domingo, 12 de abril de 2015

As intervenções didáticas na alfabetização inicial


Beatriz Gouveia (novaescola@fvc.org.br)
Página 1 de 3>>|
Beatriz Gouveia. Foto: Victor Malta
Beatriz Gouveia Coordenadora de projetos do Instituto Avisa Lá, professora da pós-graduação em alfabetização do ISE Vera Cruz, assessora em Educação e selecionadora do Prêmio Educador Nota 10
A publicação da obra Psicogênese da Língua Escrita (300 págs., Ed. Artmed, tel. 0800-703-3444, 74 reais), das argentinas Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, no Brasil em 1999, foi um marco revolucionário no campo da Alfabetização. O livro provocou uma mudança paradigmática em relação ao processo de aprendizagem da língua escrita e à forma de conceber a escrita. Nele, o aluno é entendido como um sujeito intelectualmente ativo, que formula hipóteses para compreender o que a escrita representa e aprende por meio de suas ações.
Entender como as crianças aprendem e reconceitualizar o objeto de conhecimento (nesse caso, a língua escrita) foi um passo fundamental para os pequenos assumirem o protagonismo no processo de aprendizagem. Outro passo importante foi compreender o papel dos professores no novo cenário. O que cabe a ele se a criança é quem constrói o conhecimento sobre a língua escrita? Entender que o educador não é um mero observador ou espectador do processo de aprendizagem dos alunos foi estruturante para novas reflexões didáticas. Por intermédio do docente é que a língua escrita se torna um objeto de conhecimento. O desafio do profissional é planejar situações didáticas que coloquem a língua na sua função comunicativa e que os alunos possam atribuir mais sentido às tarefas propostas.
De acordo com LERNER (2002, p.105), o conhecimento didático da Alfabetização é o resultado do estudo sistemático das interações produzidas entre o professor, o aluno e o objeto de conhecimento; é produto da análise das relações entre o ensino e a aprendizagem de cada conteúdo específico; é elaborado por meio da investigação do funcionamento das situações didáticas.
Hoje sabemos que, para contribuirmos para a qualidade na aprendizagem das crianças, é importante nos debruçarmos sobre as interações produzidas entre professor, aluno e objeto de conhecimento. Quer dizer conhecer o processo de aprendizagem dos alunos sobre a língua escrita e também conhecer a língua escrita e as práticas sociais de leitura e escrita. E mais: conhecer e compreender, cada vez mais, as melhores condições didáticas que incidem sobre a aprendizagem.
Para isso, uma das grandes contribuições da última década foram as publicações dos resultados de investigações didáticas na área da Alfabetização. As análises e teorizações sobre as interações produzidas entre professor, aluno e objeto de conhecimento em diferentes situações de ensino resultaram no conhecimento de novas condições didáticas. Isto é, as investigações foram tornando observáveis as articulações entre o modo de ser do aprendiz, as estruturas epistemológicas das linguagens e as ações docentes necessárias para promover boas situações de reflexão e aprendizagem das crianças. Estas ações aparecem, por exemplo, na seleção de materiais, nas consignas, na forma de agrupar a turma, nas perguntas propostas durante as atividades, na decisão de tornar coletiva a dúvida de um aluno, na decisão de informar ou se calar e na maneira de organizar o tempo didático. Lerner (2002, p.43) ressalta: É necessário realizar investigações didáticas que permitam estudar e validar as situações de aprendizagem que propomos, aperfeiçoar as intervenções de ensino, apresentar problemas novos que só se fazem presentes na sala de aula.
Para a escola orientar situações de ensino cada vez mais eficientes, é importante refletir sobre as condições que melhor possibilitam a assimilação e coordenação progressiva de informações que levam à obtenção de significado. De acordo com Molinari (2000), nestas situações, o professor intervém claramente com a intenção de favorecer o processo de coordenação de informações entre aquilo que as crianças sabem, os dados fornecidos pelo texto e as informações proporcionadas pelo contexto no qual ele está inserido.
A seguir, destacaremos a importância do planejamento e de algumas intervenções didáticas.
Continue lendo a reportagem:
Planejamento para antecipar e refletir

Planejar é uma prática profissional da escrita, é um ato contínuo da profissão docente. Ao fazer isso, declaramos as intencionalidades e antecipamos as melhores condições didáticas, incluindo todas as possibilidades de intervenção. Isto é, antecipamos as opções de agrupamento, os materiais oferecidos, as consignas, os problemas ou as perguntas que podem ser propostas durante a atividade e as formas de socialização dos resultados. Em resumo, com essa prática, o professor tem a chance de refletir sobre o que quer ensinar, o que a turma pode aprender e como fazer para ensinar e o aluno aprender.
É no planejamento que o docente avalia o apoio que deve oferecer ao grupo. Para tanto, é fundamental conhecer os saberes dos alunos a fim de ajustar os desafios às necessidades de aprendizagem de cada um e oferecer o melhor apoio para que todos avancem. Sabemos que a diversidade de saberes é um imperativo da sala de aula e, por isso, as intervenções devem ser formuladas para atender diferentes momentos da aprendizagem.
Um dos primeiros desafios no planejamento é assegurar que as propostas didáticas estejam articuladas às práticas sociais e comunicativas da língua para que os estudantes sejam, cada vez mais e com maior competência, praticantes da cultura escrita. Esse desafio implica, muitas vezes, em redefinir o conteúdo, pois se queremos formar usuários da leitura e da escrita, precisamos ensinar as práticas de leitura e escrita.
Para inserir as práticas de leitura e escrita no tempo didático, devem ser consideradas diferentes modalidades organizativas. Segundo Lerner (2002, p.87), trata-se de uma reflexão qualitativa do uso do tempo didático: Quando se opta por apresentar os objetos de estudo em toda sua complexidade e por reconhecer que a aprendizagem progride através de sucessivas reorganizações do conhecimento, o problema da distribuição do tempo deixa de ser simplesmente quantitativo: não se trata somente de aumentar o tempo ou de reduzir os conteúdos, trata-se de produzir uma mudança qualitativa na utilização do tempo didático. Para concretizar essa mudança, parece necessário - além de se atrever a romper com a correspondência linear entre parcelas de conhecimento e parcelas de tempo - cumprir, pelo menos, com duas condições: manejar com flexibilidade a duração das situações didáticas e tornar possível a retomada dos próprios conteúdos em diferentes oportunidades e a partir de perspectivas diversas. Criar essas condições requer pôr em ação diferentes modalidades organizativas: projetos, atividades habituais, sequências de situações e atividades independentes coexistem e se articulam ao longo do ano escolar.
As modalidades organizativas organizam o como ensinar com o que ensinar. Se pretendemos trabalhar os comportamentos leitores e escritores, por exemplo, os projetos que colocam a função comunicativa da língua dentro da escola são a melhor modalidade. Caso o objetivo seja explorar a familiaridade com o universo dos textos, as melhores são as atividades permanentes, que propõem regularidade na interação com os diferentes usos dos textos escritos. Se o foco é fazer uma análise e reflexão sobre os conteúdos da língua, as mais propícias são as sequências didáticas ou as atividades de sistematização dentro dos projetos ou das próprias sequências.
No processo de alfabetização inicial, os professores têm o desafio de planejar atividades que integrem a reflexão sobre o sistema de escrita e as práticas mediadas pela escrita. São atitudes que se opõem ao contexto em que as atividades de alfabetização são trabalhadas de forma mecânica e sem sentido. O outro desafio é planejar propostas que apresentem bons problemas, de forma que os alunos tenham de acionar os seus conhecimentos disponíveis para aprender novos elementos presentes na cultura escrita.

Intervenções didáticas

Agrupar os alunos é uma ação intencional e criteriosamente planejada pelo professor, considerando o conhecimento de cada um sobre o que se pretende ensinar e a clareza do objetivo da atividade. Por exemplo, se o objetivo é agrupar os alunos em duplas para criar um espaço de reflexão sobre o funcionamento do sistema de escrita, é necessário reunir as crianças com saberes próximos (e não iguais), para que se possa criar um espaço real de cooperação no processo da escrita. Nesta situação, agrupar estudantes com saberes muito distantes (um com escrita pré-silábica e outro com escrita alfabética, por exemplo) é improdutivo, pois as necessidades de aprendizagem e de reflexão sobre o funcionamento do sistema de escrita são muito diferentes. Isso não quer dizer que, em outras propostas, com outros objetivos, esses dois perfis não possam ser agrupados. O intercâmbio entre os estudantes, em diferentes agrupamentos, contribui para criar zonas de desenvolvimento proximal, isto é, um pode potencializar um conhecimento do outro que está em formação. Outra vantagem dos agrupamentos é a necessidade, muitas vezes colocada pela atividade, de um colega justificar as escolhas feitas para o outro. Isto é, se for uma escrita em dupla e o combinado for de cada um pôr uma letra e dizer o que escreveu, os dois precisam sustentar suas escolhas.

Também existem intervenções baseadas nas ações do professor para promover novos campos de reflexão sobre a leitura e a escrita. Elas devem ser planejadas, considerando os saberes das crianças, a natureza da atividade, e o que precisam para avançar. Uma das mais importantes quando se trata do processo de reflexão sobre a escrita: pedir para a turma ler o que escreveu, isto é, que interprete os escritos. Há um primeiro espaço de reflexão quando as crianças escrevem, pois decidem quais e quantas letras precisam e a ordem em que devem colocá-las. O outro espaço é quando elas interpretam o que escreveram, justificando as escolhas feitas.

A discussão coletiva, depois das escritas individuais, em duplas ou outros agrupamentos, é outro tipo de intervenção interessante para o professor colocar em cena algum aspecto ou conteúdo relacionado à situação de leitura ou escrita. A ideia é potencializar a reflexão dos alunos e fazer circular o maior número de informações estruturantes para subsidiar novas reflexões. Por exemplo, discutir escritas da mesma palavra produzidas por diferentes crianças, pedir para explicarem suas escolhas, perguntar quais são as fontes de informação disponíveis na sala que podem ajudar a pensar nas escritas, entre outros. O objetivo desta intervenção não é validar o saber de uma criança. É propor uma situação para que todos se sintam convocados a participar e, principalmente, reconheçam a própria potência para contribuir, dar sugestões, compartilhar seus saberes e aprender com o grupo. É mais um espaço didático para propor problemas e discussões e orientar o uso de boas fontes de informação.
Resumo
Estudar e refletir sobre como a criança aprende a ler e escrever é um imperativo do bom trabalho de alfabetização inicial. De posse dessas informações e munido de um bom planejamento, que prevê quais intervenções didáticas pôr em cena, o docente estimula o aluno a formular hipóteses, colocá-las em jogo, argumentar suas escolhas e questionar as dos colegas. A especialista destaca a validade dos projetos didáticos, dos agrupamentos e da discussão coletiva.
Referências bibliográficas
  • MOLINARI, C. A intervenção do professor na alfabetização inicial. In: MIRTA, C.; MOLINARI, C.; SIRO, A. Enseñar y aprender a leer: jardín de infantes y primer ciclo de la educación básica. Buenos Aires: Novedades Educativas, 2000.
  • LERNER, D. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed, 2002.

Nenhum comentário:

Postar um comentário